Imprensa, crime e castigo

    Carlos Alberto Di Franco
     
    O Grupo News Corporation, um dos maiores conglomerados de mídia do mundo, perdeu US$ 7 bilhões em valor de mercado com o escândalo de grampos telefônicos na Grã-Bretanha. E a derrocada se deu em quatro dias. Assustador? Não. É assim mesmo. No negócio de comunicação, setor extremamente sensível, o principal ativo tem um nome bem preciso: credibilidade. A confiança numa marca editorial demora décadas para ser edificada. Reclama ética, coerência e muito trabalho. O jornal, como certeiramente relembra o jornalista Ruy Mesquita, “é artesanato”. Exige permanente controle de qualidade. Uma escorregada pode destruir uma bela saga. Não é exatamente o caso das empresas de Rupert Murdoch, um empresário marcado por um pragmatismo que não combina com as renúncias que a ética impõe aos que pretendem fazer algo mais do que simplesmente ganhar dinheiro. Claro que se deve monetizar o negócio da informação. A independência, base da credibilidade, pressupõe saúde financeira. Mas não a qualquer preço. A renúncia aos valores éticos, aparentemente lucrativa no curto prazo, é um tiro na credibilidade e, consequentemente, um suicídio empresarial.
     
    Os gigantes tombam. E Rupert Murdoch começou a descida para a terra das sombras que a vida reserva aos que negociam valores e princípios. O News of the World, tabloide dominical do diário The Sun, chegou ao fim de seus 168 anos de existência como consequência do escândalo da violação do sigilo de telefones celulares de políticos, celebridades, esportistas e até da família real. O tabloide, com tiragem de cerca de 2,8 milhões de exemplares, deixou de circular. Não existe poder capaz de controlar os efeitos de uma grave crise ética. É crime e castigo. Não há possibilidade de absolvição.
     
    Mas não apenas os grandes delitos derrubam jornais. Os pequenos descuidos, somados a certa leniência corporativa, acabam minando o prestígio e comprometendo o sucesso. Autor do mais famoso livro sobre a história de um ícone do jornalismo mundial (O Reino e o Poder – Uma História do New York Times), Gay Talese põe o dedo em algumas chagas que ameaçam a credibilidade da imprensa. Vale uma reflexão.
     
    “Não fazemos matéria direito, porque a reportagem se tornou muito tática, confiando em e-mail, telefones, gravações. Não é cara a cara. Quando eu era repórter, nunca usava o telefone. Queria ver o rosto das pessoas. Não se anda na rua, não se pega o metrô ou um ônibus, um avião, não se vê, cara a cara, a pessoa com quem se está conversando”, conclui Talese. Hoje temos muita tecnologia e pouco jornalismo. É jornalismo sem rosto e sem alma.
     
    Jornalismo de qualidade pode se transformar em uma expressão contraditória em si mesma. Boa parte do noticiário de política, por exemplo, não tem informação. Está dominado pela fofoca e pelo espetáculo. Não tem o menor interesse para os leitores. Não resolve nada, não questiona nada, não melhora a vida das pessoas. O desinteresse crescente dos leitores com as páginas de política está em relação direta com o excesso de aspas, a falta de apuração, a crise da reportagem e a substituição de matéria jornalística por transcrição rotineira de fitas.
     
    O uso de grampos como material jornalístico virou, infelizmente, ferramenta de trabalho. A velha e boa reportagem foi sendo substituída por dossiê. É preciso ter cuidado, muito cuidado, com a fonte que voluntariamente procura o repórter. O grampeamento, além disso, continua sendo um delito. Independentemente das tentativas de minimizar a gravidade da sua prática, continuo achando que o melhor fim não justifica nenhum meio. De uns tempos para cá, no entanto, o leitor passou a receber dossiês que, frequentemente, não se sustentam em pé. Como chegam, vão embora. São chuva de verão. Curiosamente, quem os publica não se sente obrigado a dar nenuma satisfação ao leitor. Dossiê deveria ser ponto de partida, pauta. Entre nós, virou piloto automático.
     
      Enquanto esperamos o próximo dossiê, frequentemente encaminhados por fontes interessadas, tratamos de reproduzir declarações entre aspas, de repercutir frases vazias de políticos experientes na arte de manipular a imprensa. O jornalismo está virando show. Urge combater as manifestações do jornalismo declaratório e assumir, com clareza e didatismo, a agenda do cidadão. É preciso cobrir com qualidade as questões que influenciam o dia-a-dia das pessoas. É importante fixar a atenção da cobertura não mais nos políticos e em suas estratégias de comunicação, mas nos problemas de que os cidadãos estão reclamando.
     
     Repórteres carentes de informação especializada e de documentação apropriada acabam sendo instrumentalizados pela fonte. Sobra declaração leviana, mas falta apuração rigorosa. A incompetência foge dos bancos de dados. Na falta da pergunta inteligente, a ditadura das aspas ocupa o lugar da informação. O jornalismo de registro, burocrático e insosso, é o resultado acabado de uma perversa patologia: o despreparo de repórteres e a obsessão de editores com o fechamento. Quando editores não formam os seus repórteres; quando a qualidade é expulsa pela ditadura do deadline; quando o planejamento é uma abstração; quando as pautas não nascem da vida real; quando não se olha nos olhos dos entrevistados, está na hora de repensar todo o processo.
     
     A autocrítica interna deve, além disso, ser acompanhada por um firme propósito de transparência e de retificação dos nossos equívocos. Uma imprensa ética sabe reconhecer os seus enganos. Reconhecer o erro, limpa e abertamente, é o pré-requisito da qualidade e, por isso, um dos alicerces da credibilidade. 
     
    Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo (www.masteremjornalismo.org.br), professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia (www.consultoradifranco.com). E-mail: Este endereço de e-mail está sendo protegido de spambots. Você precisa habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

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